segunda-feira, maio 26, 2008

A educação dos filhos dos professores


Sara R. Oliveira 2008-05-26
Margarida Louro Felgueiras recupera a história do Instituto do Professorado Primário Oficial Português. A investigadora dá a conhecer um projecto educativo que se transformou numa residência com regras apertadas. "O Instituto definhou e morreu às mãos da tecnocracia", afirma.
Reconstruir a história de uma instituição. Recuperar memórias educativas, compreender o seu significado social. "O que terá levado ao aparecimento de uma instituição dirigida especificamente aos professores primários e não a outros níveis de ensino?" A questão abre o livro Para uma história social do professorado primário em Portugal no século XX. Uma nova família: O Instituto do Professorado Primário Oficial Português, de Margarida Louro Felgueiras, licenciada em História e professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Uma obra literária que resulta de uma tese de doutoramento.A pergunta inicial tem uma resposta. "Os professores e professoras primários/as eram no início do século XX um grupo profissional numeroso, activo, vivendo muitos deles em más condições. Estavam animados pela crença iluminista e republicana de progresso social em que a educação seria um factor determinante. Tinham uma elevada consciência do seu papel social, acreditavam muito na intervenção da imprensa como instrumento de acção política", adianta Margarida Felgueiras. Eram uma classe que detinha um grande poder organizativo. "Estavam empenhados na transformação do seu presente e do futuro e guardavam memórias das acções colectivas da classe. A União do Professorado Primário Oficial Português organizava quase 80% dos professores oficiais existentes! Ao contrário, os professores do ensino liceal eram poucos e representavam uma elite. A sua origem social também era muito diferente. Houve muita suspeição dos professores primários face ao secundário e ao próprio professorado das escolas normais". A autora explica os receios. "Temiam ser subalternizados, dirigidos pelos outros sectores. Penso que não havia experiência social suficiente para realizar essa aproximação. Não posso avaliar se teria sido benéfica naquela época. Mas a questão chegou a ser levantada entre os professores. Os acontecimentos políticos não deixaram que ela amadurecesse."A autora remexeu na História, mergulhou no passado para tentar compreender a vida interna de uma instituição que olhou a três dimensões: dos espaços, das normas e das práticas. A investigadora consultou fontes manuscritas como listas com notas escolares, processos de candidatura, mapas do movimento escolar, cadernos de direcções, imprensa diária e periódica da época, legislação, estatísticas, literatura de ficção, fontes iconográficas e materiais. E recolheu testemunhos de quem por lá passou. As opiniões divergem. Os antigos alunos recordam que o Instituto "era uma grande família", "uma prisão", "era horrível", "era um convívio muito bom".As histórias falam por si. "(...) E então quando me vi nos claustros sozinho, acompanhado com o prefeito, comecei lá a chorar desalmadamente. Queria a minha madrinha, queria a minha família, o meu pai e a minha mãe no fundo, era isso mesmo não é? E foi um fim de tarde, um fim de dia triste, de choro, e uma noite tempestuosa, com saudades dos meus irmãos. Da minha liberdade que perdi", lembra no livro Gustavo Fernandes. Ernestina Miranda conta: "(...) o Instituto tratou-nos como umas rainhas, no aspecto de nos privilegiar, de não fazer nada. Era criar meninas só para serem meninas mandantes mais nada. Não era para ser meninas obreiras, como eu costumava dizer, eram meninas mandantes.""(...) o Instituto para mim sempre foi a minha segunda casa", lembra Maria Cristina Silva. "(...) Os horários eram, realmente, muito violentos, os horários. E havia até professores do liceu que perguntavam o horário. Quando a gente lhes dizia, reconheciam que o horário era violento, que havia dois dias por semana, na semana, que nos levantávamos por volta das 5h30 para tomar banho", revela Adriano Vasco Rodrigues. "Estão-se ali educando cidadãs não em clausura mas habituadas a apresentarem-se nas aulas públicas, a fazerem as suas compras, impondo-se ao respeito pelo seu comportamento, pelo seu trabalho, pela sua modéstia, recomendando-lhes sempre que devem honrar em toda a parte a classe a que pertencem os seus descendentes - a do professorado primário", lê-se num relatório manuscrito que faz parte da documentação das alunas admitidas nos anos de 1916, 1917 e 1919.Como se explicam opiniões tão diferentes sobre a mesma instituição? "Inicialmente bem aceite, foi-se tornando inaceitável. A organização tinha muitas coisas positivas em termos de saúde, alimentação, disciplina e organização das e dos jovens. Era um acréscimo de bem-estar em relação às condições de vida da família", refere a investigadora. "Mas o projecto inicial foi desvirtuado: de um projecto educativo em que as alunas participavam do governo da casa passou a mera residência onde tudo era imposto de uma forma quase militar. O que dizer de um regulamento que vigorou de 1930 mais ou menos até 1974?!", questiona."Muitas pessoas intervenientes na vida política, universitária, autárquica ou simplesmente professoras/es foram educadas no Instituto. Por exemplo, a Dra. Odete Santos, assim como a professora Ernestina Miranda, que foi vereadora da Educação na autarquia portuense. O professor doutor Pinto Peixoto, da Universidade de Lisboa, já falecido, mas que foi presidente da Academia de Ciências e poucos anos antes de falecer tinha ganho mais um prémio internacional", revela. "Podemos dizer que há um saldo positivo do ponto de vista dos que se adaptaram e o frequentaram por três a cinco anos. Há contudo um grande número que não se adaptou ou não teve sucesso escolar e saiu. Mas isso não se deve apenas ao Instituto, mas também ao ambiente que encontraram nos liceus e escolas que frequentavam", observa.A História não pára e as mudanças reflectiram-se na instituição. "A partir dos finais da década de 1950 gerou-se um desfasamento entre o Instituto e a vida social. A disciplina deixou de ser compreendida e aparecem mais casos de indisciplina. Podemos falar antes de uma antidisciplina, que permite aos alunos viverem esse quotidiano tão dominado. O recrutamento de pessoal passou a incidir cada vez mais em pessoas com menos preparação cultural, as dificuldades financeiras agravaram-se. As direcções em geral já não tinham a militância de outrora. Só a secção masculina teve um director à altura, que combateu pela preservação da residência e da memória do Instituto", recorda. "A passagem para a tutela do IASE, no Ministério da Educação, deixou a instituição ao capricho de decisões políticas de conjuntura, de divergências de perspectivas entre funcionários, alguns que não conheciam nem entendiam a instituição, que em tudo viam privilégios inadequados, pois era necessário reduzir custos." Além disso, acrescenta, "o movimento sindical não tinha memória do Instituto e portanto não lhe atribuiu importância. Não forneceu massa crítica nem reivindicou a direcção ou um projecto educativo mais arrojado. A Associação dos Antigos Alunos ainda tentou algumas acções, mas com pessoas pouco determinadas, que ficaram emaranhadas na burocracia dos ministérios". "O Instituto definhou e morreu às mãos da tecnocracia", sublinha.A investigação foi um processo demorado. Oito anos de pesquisa. Escolhas pensadas e demoradas, sem ceder à tentação da facilidade. "O desafio mais difícil foi ter de enfrentar, um mês depois de ter tido financiamento para o projecto, a informação de que o edifício do Porto ia ser entregue ao senhorio e todo o conteúdo da instituição iria ser esvaziado. Aconteceu dois anos mais tarde o mesmo à secção feminina de Lisboa. Para quem entende estas coisas significa que a maior parte seria deitado fora, disperso por péssimas arrecadações, sem qualquer critério de armazenamento", revela Margarida Felgueiras. "O que significa que fazer história da educação em Portugal ainda é, antes de mais, um exercício de recolha e salvaguarda de fontes, de relações públicas, de auxiliar de limpeza, enfim, de dar resposta ao imprevisto. Mas tive o apoio da Associação dos/as antigos/as alunos/as."


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