quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Geografia da brincadeira sofre mutações


Sara R. Oliveira 2008-02-21

Investigador adianta que as novas tecnologias acentuam a individualização da actividade lúdica da criança.

O dicionário descreve-o. Brinquedo é um divertimento de criança. Mas o acto de brincar tem vindo a sofrer mudanças ao longo das últimas três décadas. Há novos contextos que contribuem para as alterações. Alberto Nídio, sociólogo e mestre em Sociologia da Infância, estuda a fundo esta realidade. Neste momento, procura desenhar "Trajectos Intergeracionais do Jogo, do Brinquedo e da Brincadeira", tema da sua tese de doutoramento em Estudos da Criança. A sua ideia é recolher testemunhos orais de quatro gerações vivas que contem as brincadeiras de infância.Não é preciso ir muito longe para sentir as diferenças. "Basta que consideremos as duas gerações mais recentes para percebermos de imediato as diferenças significativas que hoje têm as brincadeiras dos filhos quando comparadas com as dos seus pais", refere o sociólogo. "Se olharmos o tempo de que hoje usufruem para brincar, verificamos o muito que tem minguado, fruto de uma institucionalização maciça das crianças, onde até o chamado tempo livre é ocupado com aprendizagens formais". A mudança sente-se também nos lugares da brincadeira. "Não vão longe os tempos em que as crianças brincavam na rua, no largo da aldeia, no adro da igreja, na escola, enfim, em qualquer canto onde um pequeno espaço servisse para o lúdico". O tempo tem também encurtado. Um recente estudo europeu revela que os portugueses são os que menos brincam com os filhos. Só 6% dos mais pequenos brincam diariamente com os seus pais. A pesquisa dá ainda nota de que os brinquedos ocupam o primeiro lugar nas preferências. Ver televisão aparece logo a seguir, antes das actividades ao ar livre que, mesmo assim, estão antes dos jogos de computador ou vídeo.Há vários factores a ter em conta nas alterações das brincadeiras. "As novas tecnologias mais não vieram do que acentuar essa individualização da actividade lúdica da criança, virtual, em casa, no quarto, num esfumar contínuo do real, onde a interacção com os seus pares em brincadeiras livres e espontâneas se vai esvaindo de uma forma preocupante". Alberto Nídio destaca, a propósito, o poder do pequeno ecrã. A televisão que rouba uma parte considerável do tempo livre das crianças "subtraindo-as às brincadeiras grupais e, ainda, impingindo-lhe brinquedos de toda a espécie e feitio, baralhando-lhe completamente o sentido que tais artefactos devem ter, para conhecerem a apropriação que fará deles o verdadeiro objecto de prazer de que a criança carece para brincar, consigo e com as outras crianças"."As novas tecnologias estão a mudar a geografia da brincadeira e do brincar das crianças e, com ela, a sua imaginação e a criatividade que lhe subjaz. Não creio que as crianças de hoje sejam, por isso, mais inventivas e imaginativas que as de ontem", defende o professor. "Serão, talvez, mais expeditas a lidar com o mundo maravilhoso das novas tecnologias, cada vez mais surpreendentemente renovadas e com incontáveis potencialidades lúdicas, também". Alberto Nídio considera importante reanalisar o papel do brinquedo e da brincadeira neste século. O docente mune-se das ideias de Gilles Brougère para recordar que, "hoje, a criança tem à mão tudo quanto é candidato a brinquedo, que pode comprar ao dobrar de qualquer esquina, quantas vezes para guardar num canto da casa, raramente ou nunca chegando a cumprir a sua função socializadora"."Perdeu-se a necessidade de produzir o brinquedo e com ela pereceu o domínio da criança sobre o adulto, hoje a impor literalmente aos mais pequenos a ditadura do brinquedo concebido e fabricado por si." Hoje é uma máquina que, muitas vezes, é o parceiro das brincadeiras. "Pelo estereótipo do que propõem, estas novas máquinas do tempo não são o brinquedo que os seus fabricantes querem delas fazer, nem nunca serão o brinco de que as crianças carecem para adornar a sua actividade lúdica", salienta o sociólogo, ao lembrar Francine Ferland que defende que o mundo virtual não poderá proporcionar experiências tão ricas como o mundo real."Produzindo e utilizando brinquedos, toda a criança foi equilibrista e pintora, ceramista e botânica, arquitecta e caçadora, lavradora e escultora, tecedeira e investigadora... e tudo o mais quanto pôde aprender na principal das suas escolas - a Rua", escreveu João Amado no livro Universo dos Brinquedos Populares. O professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade Coimbra tem centrado a sua investigação no brinquedo popular enquanto património vasto e rico que, na sua opinião, muito revela sobre as aprendizagens de gerações. Numa recente entrevista concedida a alunos do 12.º ano de uma escola de Lisboa, João Amado sublinhava que "através dos jogos e dos brinquedos as crianças representam material e simbolicamente o mundo em que se estão a introduzir, interpretando-o a seu modo... aprendem a conhecê-lo". "A feitura dos brinquedos e a prática dos jogos levava as crianças a compreenderem a importância da regra, compreendiam que não podiam fazer batota e aprendiam a colaborar uns com os outros", acrescentava. João Amado tem vindo a realçar que a transformação de objectos da natureza, esse aproveitamento lúdico, tem reflexos no desenvolvimento da criança como pessoa, na construção da sua autonomia e identidade. Há, portanto, um conjunto de aprendizagens subjacente a essa "construção" de objectos para brincar, como a interiorização de regras institucionalizadas e manifestações de amor e afecto. Amado recorda as palavras de Chateau: "O adulto que sabe pensar, nasce na criança que sabe jogar e, sobretudo, que sabe construir os seus próprios brinquedos."

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