sexta-feira, junho 15, 2007

Circe e Medusa


Circe e Medusa
José Ricardo Costa




Considero-me uma pessoa normal. Tenho televisão, telemóvel, gosto de bacalhau assado com batata a murro, faço praia, tenho o cartão Modelo, vejo os jogos da selecção, conheço as marcas de automóveis. Mais normal do que isto acho difícil.
Sendo professor em Portugal, posso mesmo considerar-me, dentro do possível, uma pessoa bem-disposta e equilibrada. Mas, esteticamente falando, talvez por ser professor em Portugal, posso dizer que tenho gostos um pouco bizarros.
Seja na literatura, no cinema, na pintura, na fotografia, sou um apreciador do horrível maravilhoso, daquilo que ficou conhecido por locus horrendus. Adoro os jazigos dos cemitérios, os ciprestes banhados por uma coada luz outonal, o pio do mocho, o sibilar do vento numa velha mansão abandonada, a lua cheia ofuscada pelo nevoeiro nocturno de um bosque.
É por isso que gosto dos poemas de Herculano. Deleito-me mais com a "Cruz Mutilada" do que a ouvir o António Vitorino à segunda-feira.
Ainda ontem li dois contos do Nataniel Wawthorne. Belos contos, passados nos ambientes lúgubres da puritana Nova Inglaterra do século XIX, com aqueles colonos vestidos de preto, eternamente culpados pela danação do pecado original. Estão na América, mas poderiam estar nos quadros de Munch, de Caspar David Friederich ou de Böcklin.
Sinto mesmo uma atracção por figuras pérfidas e malignas, sobretudo mulheres. Arrepio-me só de pensar nelas, mas sinto um inexplicável fascínio pelas vingativas Erínias. Ou divirto-me com as maldades de Hera, motivadas pelo espírito ciumento perante as adúlteras tropelias de Zeus.
Gosto delas más, seja na ficção ou na vida real. Gosto de Lady Macbeth, de Lucrécia Bórgia, de Salomé, da Condessa Bathory.
E a Juliana do Primo Basílio? Uma das mulheres mais odiosas de toda a história da literatura. Bem mais do que Carolina Salgado para um sócio do FCP. Mas é isso que a torna interessante. Pobre Luísa, a boazinha Luísa. É Juliana o verdadeiro centro da obra.
E aquelas lascivas e pálidas vampiras do Drácula de Bram Stoker, sedentas de sangue fresco? E a Ofélia pintada por Millais que tem tanto de angélico como de tétrico, e que a qualquer momento se pode erguer para nos vir beijar com os lábios da morte?
Não sei como explicar isto, mas preferia ser drogado por cinco pré-rafaelitas do Waterhouse e ficar à mercê dos seus inefáveis caprichos, do que jantar com a Edite Estrela no Papa Açorda.
Verdade seja dita, eu só digo tudo isto porque estamos no território da imaginação. Uma das vantagens da imaginação é o facto de nos podermos evadir para um mundo cheio de perigos e horrores e do qual saímos sem um arranhão, em vez de ficarmos condenados a acordar de manhã para enfrentar turmas de 27 alunos que não querem aprender o que lhes queremos ensinar.
O problema é que nem sempre é clara a fronteira que separa a imaginação da realidade. Eu consigo perceber o que sentiriam muitos gregos, só de pensarem que poderiam ir parar à ilha de Circe ou olhar para o rosto de Medusa.
E essa é uma das grandes virtudes da mitologia e da ficção. De um modo quase expressionista, ajudarem-nos a perceber o que às vezes está mesmo à frente dos nossos olhos sem nos apercebermos.
Está a ver aquela cena do "Shining" na qual o Jack Nicolson abraça uma bela e elegante mulher que sai da banheira e só depois se apercebe que se trata de uma horripilante e sulfurosa bruxa?
É neste sentido que, ainda que vivamos no Portugal tecnológico e simplex do século XXI, ninguém pode dormir descansado. Temos de estar de olhos bem abertos para não sermos vítimas de um sangrento e maléfico destino.
É verdade que não sou Dánae para ter medo de Hera. Não cometi qualquer crime de sangue para temer o assédio das Erínias. Não sou João Baptista para ter medo de Salomé. Não sou uma virgem de pele cálida e veias azuis para ter medo da Condessa Bathory.
Mas sou professor em Portugal e tenho medo de Circe e de Medusa. Circe, na sua ilha transformava os homens em porcos. Medusa transformava em pedra quem para ela olhasse.
Que Deus nos proteja.

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