terça-feira, setembro 18, 2007

O estado da Educassão
ou
A ESCOLA IDEAL, LIMITADA


Apenas os meus familiares mais chegados sabem que, quando eu tinha quatro anos de idade, caí de um escadote e rachei a cabeça de alto a baixo. A minha mãe ainda tentou apanhar do chão o que de lá saiu para voltar a colocar tudo no lugar, mas acho que deixou algumas coisas de fora e pôs outras que não pertenciam à matéria original. Depois, sabe-se como isto é, basta espremer uma pasta de dentes e tentar introduzir no tubo o creme que de lá saiu – por mais cuidado que se tenha, a arrumação nunca é a mesma.
É dessa altura que datam as minhas primeiras preocupações sobre a Escola Ideal. Deveria ter alunos? Deveria ter professores? Não seria melhor usar apenas texugos, que são animais muito dóceis e que tanto ensinam como aprendem? Estas minhas especulações cedo se tornaram o centro de toda a minha vida. O que seria a Escola Ideal?
Por vezes, quando ia pela rua, perguntava a quem se cruzava comigo: "O senhor diz-me as horas, por favor?". E depois de o incauto ter respondido com a melhor boa fé, eu perguntava logo de seguida: "Já agora, importa-se de me dizer o que é a Escola Ideal?". Alguns, embora com um olhar estranho, ainda se davam ao trabalho de responder: "Olhe, o senhor vai por esta rua, está a ver?, corta na primeira à direita e depois à sua esquerda há uma travessa muito empinada, e, quando chegar aí, o melhor é perguntar a um polícia." Outros afivelavam uma expressão distante e diziam: "Desculpe mas agora tenho de ir lavar o cabelo", e iam-se embora apressadamente. Houve mesmo alguém que me deu um valentíssimo murro, vociferando que não admitia que dissessem mal da família.
Comecei então por imaginar um pequeno país, muito parecido com Portugal. Esse pequeno país, não sendo Portugal, era mesmo muito parecido com Portugal. Era também uma República. Só que era uma República das bananas. Mas sem bananas. Tinha um governo que não era socialista. Esse governo afirmava mesmo que não era socialista, era muito socialista. Tão socialista que o socialismo do governo não cabia na cabeça nem na vesícula nem no apêndice dos governantes. Tal a quantidade de socialismo do governo. Quanto à qualidade, era, obviamente, um socialismo sobrante. Mas não soçobrante, que soçobrante era o país. E esse socialismo sobrante abatia-se pesadamente sobre a cabeça dos cidadãos. Que se queixavam, os ignorantes. A ponto dos governantes se dedicarem à busca de uma tecnologia de ponta que lhes permitisse eleger uma nação mais educada. Uma nação em que os cidadãos soubessem apreciar o socialismo que o governo, numa enlevada caridade, fazia com que se abatesse pesadamente sobre a sua cabeça. Falava-se em impostos diretos – era socialismo. Quanto aos indiretos, à dupla e tripla tributação, alguém tem dúvidas de que se tratava do mais puro socialismo? E a previdência? Socialismo, claro. E os lucros bilionários dos bancos? Socialismo do mais castiço.
Foi quando a Senhora Primeira Ministra mandou chamar o Ministro da Educassão e lhe disse:
- Ouça lá. Você que tirou Mestrado no Samouco, diga-me lá uma coisa. Hoje, quando estava na casa de banho, lembrei-me que, se pretendemos uma Nação à nossa própria imagem, o que temos de fazer é educá-la. O pior são os Professores, que fazem greves bramando por aumento do salário, melhores condições de trabalho, programas escolares estruturados de acordo com a realidade social e cientificamente corretos. O que é que você acha disto?
- Acho que Vossa Excelência disse uma coisa notável.
- Sim? O que foi?
- “Bramando”. Nunca tinha ouvido bramar no gerúndio. Até se me arrepiaram os cabelos das costas. Lá bem em baixo, sabe?
- Então está decidido. Vamos para cima dos Professores e damos cabo deles.
- Sim, Senhora Primeira Ministra – disse o Ministro da Educassão, que era um sabujo de primeira e tinha cara de sabonete.
Foi assim que nasceu a Nova Escola, em oposição à Escola Ideal pela qual bramavam os Professores. Em vez de aumento de salário, os Professores tiveram aumento de trabalho. Ninguém quis saber que a profissão era muito desgastante, tanto no plano físico como no psicológico, que já trabalhavam até demais em casa e estavam sujeitos à pressão constante dos Inspetores, dos Pais, dos Colegas, dos Alunos e do Aquecimento Global. Em vez de gabinetes individuais de trabalho (já viram o luxo?), passaram a ficar todos amontoados na Sala de Professores (pois não é para isso que ela existe?). Só se ouvia “Por favor, Colega, tire o pé de cima do meu olho direito, que já me esmigalhou os óculos para dentro do globo ocular”. “Desculpe, Colega, mas a Colega de Latim espetou a sombrinha no meu pescoço e ainda não conseguiu desencravá-la”. “Ó Colega, francamente, tire o dedo do meu ouvido, que já me furou o tímpano”. “Não é o dedo, Colega, é a caneta zincada do meu falecido avô paterno”. Abre-se a porta.
- Aula de substituição! 8º J, Educação Física. Na sala 2.
- O 8º J não é a turma que estropiou o Presidente do Conselho Diretivo?
- Mas a sala 2 não é um Ginásio, é uma salinha para rendas e bordados....
Era então que os toaletes ficavam abarrotados. Era um espetáculo que só visto porque contado ninguém o conseguia, tal a mistura de braços, pernas e de outras partes menos pudibundas.
Era assim, a Nova Escola, construída por revolucionários que já se tinham esquecido dos seus dias de bancos de escola e que se alguma vez foram professores o devem ter sido dos caniches das madamas. “Ó senhor José, por amor de Deus, não deixe a Maryleid fazer xixi na panela da sopa. Não vê que ela pode queimar-se, tadinha?” “Ó Lurdinhas, filha, limpe o rabinho ao Staydown, não pecebe que ele tá de diarréia, o quiducho?”.
Pois é, na verdade, cada vez me convenço mais de que a Escola Ideal só se pode alcançar fazendo um buraco estreitinho e muito fundo, que pode ser cavado em qualquer descampado. Tão fundo que, mesmo pondo todos os professores e todos os alunos de pé uns sobre os ombros dos outros, a cabeça do último nunca será visível, e sem ser preciso calcar! Ainda pensei que talvez esse pessoal todo estivesse a sair pelo outro lado do mundo, mas um simples telefonema informou-me de que os fulanos do lado de lá tinham feito o mesmo com a Escola Ideal deles e o certo é que, deste lado, não se via sair nada.
O meu grande problema agora é tentar descobrir o que aconteceria se puséssemos lá também os políticos, os funcionários dos ministérios, os polícias, os militares e mesmo o clero em peso. Se considerarmos que o raio da Terra mede 6000 km e que a altura média de uma pessoa é 1,75 m, num buraco desses caberiam 3428571,(428571) indivíduos. O tal país muito parecido com Portugal estaria salvo, já que não me parece que haja mais que 3,5 milhões de indivíduos daquelas categorias. Lembremo-nos do número crescente de brasileiros, de ucranianos, de indigentes e de doidos, tanto os mansos, como os varridos, que não contam nas estatísticas. Será que, nestas condições, ainda não se veria nada? Pode bem acontecer.
Mas mesmo assim, ninguém me tira da idéia que o mais provável era andarmos a estragar a vida a alguém que vivia pacatamente no centro da terra….

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