terça-feira, outubro 10, 2006

O grande inimigo da educação



"A pobreza sempre habitou a Grécia,mas os gregos são corajosos e é por isso que podem afastar a pobreza"
Heródoto

1. Óbvia urgência por que nos temos batido, foi agora anunciada uma prova nacional de admissão à docência. Mas, como afirmou Nuno Crato, "a imaginação dos técnicos do ministério e de alguns ideólogos pode transformar uma boa ideia numa coisa inútil". Infelizmente, verificou-se isso logo à partida, pois fica de fora da prova anunciada o mais importante que a ela deveria ser submetido: a docência para o 1.º ciclo do básico. Certamente para preservar as escolas superiores de educação dessa avaliação comprometedora, garantindo-lhes, ao mesmo tempo, a clientela. Aconteceu o mesmo com a reciclagem dos professores de Matemática, entregue a essas escolas, que os tinham formado mal à partida.
E que dizer da proposta de um 2.º ciclo de estudos superiores para os candidatos (formados nas universidades) à docência no 3.º ciclo do básico e no secundário, podendo ser realizado em qualquer instituição que proporcione essa oferta? Parece claro o artifício: submeter os docentes ainda formados pelas universidades ao tratamento pedagógico de escolas, na sua generalidade, focos de infecção do eduquês e, ao mesmo tempo, garantir-lhes a clientela em quebra.
Por outro lado, é necessário saber a quem vai ser confiada a prova nacional de selecção e conhecer o que irá ser avaliado: apenas a pedagogia ou os conhecimentos científicos, o domínio das matérias a ensinar? "Não faz sentido ensinar o que não se sabe", e é precisamente esse aspecto que, no contexto da pedagogice reinante, é imperativo avaliar.
A chave mestra para a mudança na educação está nos professores. E neste domínio a ideologia e as teorias pedagógicas dogmáticas que têm dominado a educação não podem ser tidas como instrumento de solução do problema. São elas o problema.
2. As medidas administrativas e de reorganização da rede escolar que a ministra tem aparecido a executar não devem fazer esquecer o facto de ainda não ter enfrentado o essencial. Pelo contrário, quando subscreve ou é a face de medidas acertadas nessa direcção, parece estar apenas a ceder o suficiente para não ter de assumir o essencial: libertar o sistema de ensino da tutela dos "especialistas" da educação; para cuja autoridade (perante a qual se curvaram mais ou menos todos os ministros) não se vê a mais leve justificação.
Há gente lúcida e informada entre os especialistas da educação? Haverá, certamente, mas tarda a assumir a coragem da crítica ou a dignidade da autocrítica, a defesa de outro ensino e outras escolas que, competindo entre si e como ensino privado pela excelência, promovam a qualidade geral. Um ensino novo que assuma o fracasso da escola pública que temos tido, que nivela por baixo e vai afastando os que podem procurar e pagar outra educação. Especialistas que defendam e ajudem a construir um sistema de ensino público capaz de revelar a inteligência e os talentos das crianças pobres, nunca descobertos e incentivados na escola do eduquês, acrescentando aos indispensáveis exames outras formas de avaliação séria que reconheçam as qualidades e talentos que os exames não possam identificar.
3. Ao contrário do que inadvertidamente se possa supor, o actual ministério não se afastou do eduquês. Se não, vejamos:
Em matéria de educação, os exames (bem elaborados e a sério) separam as águas em Portugal. E o ministério revelou-se contra eles. Não foi apenas a tentativa ― frustrada pela opinião pública ― de acabar com o exame de Português quando eliminou o de Filosofia ou a publicação do novo regime de avaliação externa e certificação do ensino de nível secundário, uma habilidade para suprimir exames. Na realidade é mais fácil acabar com os exames do que melhorar a qualidade do ensino enfrentando o eduquês.
Na verdade, logo no seu primeiro acto público, suponho, este ministério mostrou ao que vinha. Recorde-mos: a 5 de Abril de 2005 noticiava-se que os exames do 9.º ano podiam acabar já em 2006. O Ministério também quereria minimizar o impacto das provas de Português e Matemática, reduzindo o peso específico da nota na classificação final dos estudantes. Tudo se passou durante uma visita à escola de São Domingos de Rana, onde Maria de Lourdes Rodrigues afirmou não estar em condições de avaliar as virtudes e os defeitos dos exames do 9.º ano e relativizou a sua importância na avaliação. "Os exames são uma única peça num sistema de avaliação que tem que ser um pouco mais vasto (...) É preciso ter consciência de que avaliam apenas uma parte das capacidades dos alunos. Não avaliam coisas como a oralidade", disse. E por isso suprimem-se...
A intenção era clara e foi apenas a atitude clara do primeiro-ministro que salvou o exame do 9.º ano. O seu discurso inequívoco foi, na altura, mobilizador. Só foi pena o exame contar tão pouco, mas mesmo assim atente-se na mobilização gerada entre alunos e professores, no espírito novo, no sopro de desafio, que percorreram nesses dias tantas escolas!
4. Dizer-se serem necessários muitos anos para verificar os efeitos das mudanças na educação é, no sentido que se percebe, uma enorme e despudorada mentira. A grande mentira que tem permitido aos "especialistas" e aos vários governantes, durante todos estes anos, fugirem à sua responsabilidade pela tragédia.
Mude-se o necessário e óbvio e em duas semanas as escolas serão outras em muitos aspectos fundamentais. Há escolas diferentes. Visite-se, por exemplo, o Externato João Faria, em Arruda dos Vinhos, melhor colocado no ranking dos recentes exames de Matemática do 9.º ano, uma escola pública por contrato mas de propriedade e gestão privadas. O maior obstáculo ao mérito que a distingue tem sido... o ministério. Obstáculo que também as escolas privadas têm cada vez maior dificuldade em contornar.
A confusão de directivas e contradirectivas, as pseudo-reformas, a legislação labiríntica, as tretas das áreas não curriculares, o absurdo ou, no mínimo, o peso excessivo das áreas de projecto de turma e de escola (que só teriam sentido no ámbito das diferentes disciplinas), o estudo acompanhado, imposto também a quem não precisa, privando do acompanhamento suficiente os que carecem realmente dele, a sua inadequação às necessidades dos alunos, as pedagogices supostamente dernier cri que confundem e ocupam os professores e, na verdade, servem apenas para justificar o emprego da nomenklatura do ministério, impedindo ou desmobilizando a iniciativa dos docentes.
Em Portugal, o verdadeiro ópio do povo continua a ser o Estado.

Guilherme Valente, in Público de 26 de Abril de 2006

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