terça-feira, dezembro 05, 2006



A Autocracia de Sócrates



Por Miguel Urbano Rodrigues
04 de dezembro de 2006

Sócrates, como símbolo e instrumento do Sistema, tenta gradualmente impor ao País um regime de contornos autocráticos. O seu governo comporta-se já como inimigo do povo. Cabe a este derrotar o seu projecto reaccionário, assumindo-se como sujeito da História.


«O quadro post eleitoral traz uma certeza: no horizonte imediato esboçam-se os contornos de um dos piores governos dos últimos 30 anos»Retirei esta epígrafe de um artigo que publiquei em Fevereiro do ano passado após as eleições legislativas portuguesas que deram ao Partido Socialista maioria absoluta.Esse texto, publicado pelo «Avante!» e divulgado em espanhol e inglês em sítios web progressistas, foi criticado por alguns amigos e camaradas Entendiam que a Sócrates devia ser concedido «o benefício da dúvida». Transcorridos 22 meses, relendo o que então escrevi, sou levado a concluir que fui insuficiente na previsão. O actual governo aparece-me como o pior desde o derrubamento do fascismo.O PS apresenta-se como partido de esquerda – mentira repetida diariamente pela imprensa - mas as suas direcções , a partir da contra-revolução do 25 de Novembro de 1975, actuaram como aliadas do grande capital e do imperialismo. Seria entretanto inexacto afirmar que todos os governos do PS foram iguais na aplicação de politicas neoliberais incompatíveis com os compromissos assumidos durante as campanhas eleitorais. A maioria absoluta permitiu a José Sócrates governar mais à direita do que o próprio governo chefiado por Sá Carneiro. Essa realidade não é ainda entretanto transparente para amplos sectores da sociedade portuguesa.A comunicação social, hoje, difere muito da que havia em Portugal quando entrei no jornalismo no início dos anos 50. Existe, contudo entre ambas uma estranha afinidade. A atitude perante o poder de muitos epígonos do governo Sócrates traz -me à memoria a que adoptavam na época intelectuais que, sem alinharem ostensivamente com o fascismo, contribuíram pelo seu silencio e vacilações para que corresse pelo mundo a imagem de um Salazar que, situando-se acima dos partidos e das paixões, emergia como um patriota ,insensível a pressões, mal compreendido mas incorruptível, que pusera fim ao caos financeiro e usava a autoridade do Estado em benefício da nação como colectivo. Sócrates saiu praticamente do anonimato- era um deputado obscuro no Parlamento onde durante anos permaneceu quase invisível para a liderança do seu partido. Milhões de portugueses perguntavam quem era aquele homem e o que iria fazer quando assumiu o governo após o intermezzo hilariante de Santana Lopes. O seu discurso cinzento de campanha permitira, porém, entrever um pensamento reaccionário, que reflectia a ausência de uma cultura sedimentada e a astúcia de um político que assimilara bem as técnicas soaristas de manobrar o aparelho partidário. Foi exímio na utilização dos media para incutir em amplas camadas da pequena burguesia a ideia de que, finalmente, surgia um primeiro ministro diferente, austero, desambicioso, empenhado em dar uma resposta rápida a aspirações compartilhadas pela maioria dos portugueses.Equipas especializadas em manipular a opinião pública esboçaram o perfil de um reformador com características inéditas. Os analistas com colunas fixas, ou programas na TV, enxame de vespas que envenena as consciências, entraram no jogo, com poucas excepções. Gradualmente foi imposta a grande mentira: Sócrates era o Reformador de que o Pais necessitava. A palavra foi exaustivamente utilizada. Um governante providencial, pétreo na firmeza, destemido, iria reformar Portugal, de alto a baixo. Foi anunciada a criação de 150 000 empregos. Sócrates atacou simultaneamente em múltiplas frentes como estratego consumado. Um furacão de medidas «reformadoras» fustigou as áreas da Administração Publica, da Justiça, dos Transportes, das Forças Armadas. Um novo conceito das Relações Internacionais foi trombeteado como demonstração de uma compreensão profunda da complexidade de um mundo em crise. Na realidade nunca a vassalagem de Portugal perante o imperialismo foi levada tão longe. Projectos megalómanos foram anunciados por diferentes ministros.A Função Publica, a Educação, a Saúde mereceram uma atenção especial na ofensiva «modernizadora».O slogan de que ninguém como Sócrates ousara enfrentar o privilégio e erradicá-lo da sociedade portuguesa correu o país com estrondo. Sondagens com resultados de encomenda garantiam que a popularidade do Primeiro Ministro aumentava a cada semana.A irracionalidade invadiu o quotidiano com tal ímpeto que um OGE de pesadelo – agressão ao mundo do trabalho orientada para o reforço dos privilégios da classe dominante - foi encarado por um jurista de renome como expressão da única politica de esquerda susceptível de garantir a sustentabilidade financeira do estado social. A compreensão do que estava a acontecer tardou. Hoje, neste final de um Outono diluviano, milhões de portugueses apercebem-se, com muito atraso, de que, afinal, o Governo Sócrates trata de impor uma politica que pode ser definida como flagelo nacional. Professores, enfermeiros, médicos, trabalhadores de quase todos os sectores da Função Publica, militares, GNR, Policia, jornalistas foram alvo de medidas que os atingiram brutalmente. O poder de compra dos assalariados entrou em queda ininterrupta. Entretanto, a banca, as grandes empresas e as transnacionais acumulam lucros fabulosos.O protesto popular começou a adquirir consistência em Outubro quando os trabalhadores, respondendo ao apelo da CGTP, numa manifestação em que participaram mais de 150 000 pessoas, desfilaram através das ruas de Lisboa rumo ao Parlamento para condenar as medidas perigosamente reaccionárias do Governo.A maré da contestação atingiu então um nível alto. Um pouco por todo o país as lutas sociais intensificaram-se, surgindo como consequência natural de uma estratégia do patronato que promove e defende despedimentos maciços, apresentando-os como fenómeno natural, inseparável da modernização. Ministros cuja arrogância lembra a dos procônsules de Salazar fazem, com cinismo, a apologia dos cortes orçamentais nas áreas da Cultura, da Educação, da Segurança Social. Em piruetas retóricas de recorte surrealista não hesitam em definir essas decisões como benéficas para o povo. Seriam etapas na construção do Estado Social, assim como o encerramento de escolas, hospitais e centros de saúde.O discurso socrático (antítese do celebrizado pelo filósofo grego) da modernidade não se limita a ser uma agressão ao povo. É simultaneamente um insulto à inteligência. O Primeiro Ministro está a transformar o pais em palco de uma tragédia com cenas de teatro de absurdo.A mais recente iniciativa na ofensiva «reformadora» do Governo de um partido cuja direcção renega pela prática o nome (Socialista) é o diploma concebido para extinguir a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Jornalistas. A indignação foi tamanha que o secretario de Estado da pasta que tutela a área, ao receber os dirigentes de uma organização que nem o fascismo ousara suprimir, alegou que a medida não tem motivação financeira, sendo o único objectivo pôr fim «a um privilegio». Santa hipocrisia!Os argumentos dos jornalistas são convincentes, irrespondíveis. Largamente difundidos, não cabe aqui retomá-los Mas não basta que tenham sensibilizado a opinião pública.Os jornalistas, membros de uma «classe» na qual as clivagens ideológicas dificultam posições unitárias, apresentam-se desta vez numa frente comum, com disponibilidade aparente para uma luta dura e de larga duração. Sendo uma realidade que as direcções dos mass media e a maioria das chefias representam os proprietários das empresas, traçando a linha editorial, os jornalistas dispõem de uma capacidade de intervenção que não deve ser subestimada. Recordando lutas em que participei, aqui e no Brasil, como profissional da imprensa, espero que, tratados como gado por um governo que os não respeita, os jornalistas portugueses saibam assumir colectivamente o desafio.A crise portuguesa insere-se numa crise de amplitude mundial, a crise estrutural que atinge o capitalismo e que se manifesta de maneiras diferentes nos países da União Europeia. Sofrem de miopia politica os que contemplam a União Europeia como construção sólida na qual o crescimento do PIB na Alemanha e em França anuncia uma firme retomada da expansão. E miopia maior é a dos que na política de Sócrates identificam um caminho correcto que aproximará Portugal dos países mais desenvolvidos da União. Ocorre precisamente o contrário. A aplicação das receitas da ortodoxia neoliberal neste país imperializado está a seguir o modelo que na América Latina produziu efeitos tão nefastos que os povos daquela Região a repudiam hoje do México à Patagónia, atribuindo ao imperialismo a responsabilidade pelo seu empobrecimento e pelo aprofundamento da desigualdade social.Em Portugal a destruição do que resta da herança de Abril prossegue num ritmo acelerado. Para se inverter esse processo uma tarefa complementar da luta de massas é o total desmascaramento do Governo cuja base de sustentação social é muito mais frágil do que afirma uma comunicação social controlada por grandes grupos económicos. Nunca é excessivo repetir que a ideologia da classe dominante marca decisivamente o conjunto da sociedade. Daí a necessidade de uma interacção permanente entre a luta ideológica e as lutas populares.O Partido Comunista Português no seu último Congresso colocou como objectivo prioritário na estratégia indispensável para travar e derrotar a politica de direita a intensificação da luta de massas. Como organização revolucionária que se bate há mais de oitenta anos por uma autêntica democracia, apontou um caminho que exigirá enormes sacrifícios aos portugueses que nas ruas e frente a São Bento gritaram o BASTA! dirigido a Sócrates e às forças que o sustentam e ele representa.O grande desafio consiste na transformação das palavras em actos, ou, para ser mais preciso, na praxis de uma estratégia que responda às exigências da História.A luta deve ser desenvolvida contra o sistema e não dentro do sistema.Portugal não vive uma situação pré-revolucionaria. Muito longe disso.A existência de uma relação de forças marcada por uma concentração de poder enorme na classe dominante (tornada mais arrogante pelo apoio externo do imperialismo) tende a favorecer as concepções reformistas (e capituladoras) entre aqueles que rejeitam o neoliberalismo globalizado, sobretudo entre os intelectuais.Não enxergando no horizonte uma alternativa, concluem que a única opção realista é a luta orientada contra os excessos do sistema. Por outras palavras um combate pela humanização do capitalismo, conduzido no respeito das regras por ele impostas. Transformar a luta de massas contra a engrenagem de opressão em alavanca de uma mudança da relação de forças que abra a perspectiva de uma sociedade realmente democrática é para muitos intelectuais progressistas uma impossibilidade, uma utopia romântica.Estamos perante uma questão estratégica de fundo.O capitalismo não é humanizavel. A utilização dos instrumentos criados pela burguesia para mascarar de democracia o poder hegemónico que exerce à revelia do povo é muito importante. Não a subestimo. Mas ela deve ser colocada a serviço do objectivo principal, a mobilização das massas e o seu combate. É um erro gravíssimo, mas comum, inverter as coisas e identificar nas lutas reivindicativas dos trabalhadores uma simples forma de pressão destinada a facilitar a defesa dos seus direitos pela via institucional. A principal frente de batalha não está no Parlamento, mas nas fábricas, nas escolas, em todos os lugares de trabalho, nas ruas. O exemplo que o povo francês nos ofereceu em Abril – Maio deste ano encerra uma lição fundamental. As massas, enfrentando a repressão, obrigaram o Poder a revogar uma lei profundamente reaccionária, aprovada pelo Parlamento e promulgada pelo Presidente da Republica.Sócrates, como símbolo e alavanca do sistema, tenta gradualmente impor ao País um regime de contornos autocráticos. O seu Governo comporta-se já como inimigo do povo.Em Portugal os trabalhadores, recusando a sua politica, deixam transparecer uma disponibilidade crescente para a luta. As condições objectivas são, a cada semana, mais favoráveis para a mobilização das massas. Falta estimular o desenvolvimento das subjectivas para que o povo se assuma como sujeito da História.

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