sexta-feira, outubro 13, 2006

Prezados Professores
Imagino que muitos de vós estejais tão perplexos quanto eu a respeito de uma série de ataques virulentos que me foram recentemente dirigidos, pondo em causa não apenas o meu trabalho como também a minha pessoa. Quanto a estes últimos, trata-se de calúnias que não merecem resposta. Já os ataques ao meu trabalho devem ser objecto de reflexão serena. Antes de a fazer, no entanto, não posso deixar de me perguntar: por que razão haverei eu de ocupar com este tema tão rara e tão preciosa ocasião de me comunicar convosco? Em boa verdade, a resposta é simples. Ao longo de duas décadas, muitos de vós tendes manifestado interesse no meu trabalho, usando os meus livros na preparação das vossas aulas e recomendando-os aos alunos. Agora que esse trabalho é posto em causa, é natural que isso vos cause alguma perplexidade e, sendo assim, estando eu próprio perplexo, é azado que nos tentemos esclarecer, oferecendo-me para lançar as primeiras pistas. Por limitações de espaço, refiro-me a duas questões que não abordei em intervenções recentes nos jornais. 1. O debate epistemológico. O conhecimento científico é uma construção social porque não há uma relação directa e imediata entre sujeito e objecto. Entre eles interpõem-se mediações que extravasam da relação: teorias, conceitos, métodos, protocolos e instrumentos que simultaneamente tornam possível o conhecimento e definem os seus limites. Isto não significa que o conhecimento científico seja arbitrário. Por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque as mediações são o resultado de consensos alargados no seio da comunidade científica. São esses consensos que tornam possíveis os conflitos através dos quais o conhecimento progride. O que conta como verdade é a ausência provisória de um conflito significativo. O conhecimento científico é uma prática socialmente organizada. O social, longe de ser externo à racionalidade da ciência, é constitutivo dela. Por exemplo, os procedimentos de prova não dispensam a intervenção de mecanismos de confiança e de autoridade vigentes nas comunidades científica e, como tal, irredutíveis aos procedimentos dos cientistas tomados individualmente. Em segundo lugar, porque apesar de todo o conhecimento ser uma intervenção no real, isso não implica que o real possa ser modificado arbitrariamente. Pelo contrário, o real resiste e nisso consiste o seu carácter activo. O que conhecemos do real é a nossa intervenção nele e a sua resistência. Esta resistência faz com que a certificação das consequências do conhecimento fique sempre aquém da sua total previsibilidade. É por isso que as acções científicas tendem a ser mais científicas que as suas consequências. É por isso também que os novos conhecimentos geram novos desconhecimentos, aí residindo a sua incontornável incerteza.A existência do real não pressupõe a transparência do real. Mesmo a imagem mais transparente, a do espelho, é invertida e o conhecimento das regras da inversão, por mais rigoroso, não elimina a inversão. O realismo crítico, pragmático e agencial é o que permite a tensão mais criativa entre a possibilidade e os limites de conhecimento.
2. Ciência social positivista e crítica. Desde meados do séc. XIX começou a desenhar-se um confronto entre uma concepção "positiva" e uma concepção "crítica" da ciência social. Ambas visam analisar a realidade social, mas enquanto a primeira reduz a realidade ao que existe e, como tal, tende a conformar-se com o que existe, a segunda inclui na realidade a sua potencialidade e a sua capacidade para ser de modo distinto daquele que hoje prevalece - e melhor. A concepção positiva procura descrever os fenómenos sociais a partir de um ponto de vista alegadamente neutro e crê que a objectividade dos métodos de investigação protege a ciência das "contaminações" do contexto social e político em que a ciência é feita, das ideologias e do senso comum. Baseia-se numa separação estrita entre factos e valores e nega que, por via dessa separação, possa sufragar valores não explicitados. Refere-se a um cânone de autores clássicos, europeus e norte-americanos, defende as diferenças disciplinares e despreza tudo o que está para além desse cânone e, sobretudo, a produção científico-social das sociedades não-ocidentais.Por sua vez, a ciência social crítica assenta numa concepção dinâmica da realidade, do social e do conhecimento. A realidade contém em si tendências e alternativas, umas possíveis, outras já disponíveis mas marginalizadas ou ocultadas, e o conhecimento científico tem de as envolver a todas. Aliás, o conhecimento científico é parte integrante dessa realidade ampla, é ele próprio um processo social dinâmico onde é possível identificar, para além das concepções dominantes, as alternativas e os conhecimentos emergentes. Não há, pois, conhecimento neutro, já que todo ele é situado histórica e socialmente. A profissão de neutralidade tem servido quase sempre para valorizar o status quo contra as forças que o contestam. Para a ciência social crítica é assim crucial distinguir entre objectividade e neutralidade. A objectividade forte que se pretende assenta em dois pilares: na aplicação criteriosa dos métodos de investigação e na explicitação das condições pessoais, sociais e organizacionais que possibilitam, constrangem ou orientam a produção do conhecimento. Só assim é possível identificar o campo de alternativas que se oferecem e as razões pelas quais algumas são hegemónicas e outras marginalizadas, e os valores à luz dos quais algumas são de preferir e outras de rejeitar. A ciência social crítica é assim reflexiva, atenta às limitações do cânone clássico e das suas ortodoxias disciplinares quando se trata de produzir conhecimento adequado para identificar a opressão, o sofrimento e a discriminação a que está sujeita a maioria da população mundial (quase toda ela vivendo fora dos países onde se produz a ciência hegemónica), um conhecimento que sirva de fundamento cognitivo e ético à defesa da solidariedade, do respeito pelos direitos humanos, da participação política e da democracia.A ciência social crítica é tão empírica quanto a positiva e a objectividade forte por que se pauta permite-lhe criar conhecimento relevante, mesmo para os que não partilham os valores que lhes subjazem.
Boaventura Sousa Santos

2 comentários:

Ouvindo a partitura... disse...

Cara luisa!

Gostava de saber se fosse possivel, qual a fonte deste texto publicado por si. e escrito por Boaventura Sousa Santos.

Cpts
Margarid@

Luísa disse...

Boaventura de Sousa Santos; Jornal a Página da Educação" , ano 11, nº 112, Maio 2002, p. 2.