segunda-feira, novembro 13, 2006

«Muita retórica e pouca concretização»



Não comenta o desempenho da ministra da Educação, mas vê no Governo pouca concretização. Considera que a pasta que assumiu, há 15 anos, é difícil em qualquer país do mundo. Já recusou vários convites para voltar a ser ministro, mas continua presente no panorama educativo nacional e internacional. Roberto Carneiro, em entrevista ao EDUCARE.PT.
Foi ministro da Educação do Governo de Cavaco Silva e, apesar de já terem passado 15 anos, continua a ter um papel inegável no panorama educativo nacional e internacional. É perito e consultor de organizações internacionais como o Banco Mundial, UNESCO, OCDE, Conselho da Europa e União Europeia. Já foi examinador das Políticas Educativas em França, Turquia e Japão. Actualmente, em Portugal, é professor da Universidade Católica e dirige os Observatórios da Imigração (ACIME) e a Sociedade da Informação e do Conhecimento (UMIC). Já publicou mais de 400 artigos e livros. De trato afável, Roberto Carneiro mantém um olhar atento sobre a Educação em Portugal. Recusa-se a comentar a liderança da ministra Maria de Lurdes Rodrigues, mas afirma que, da parte do Governo, continua "a ouvir muita retórica e pouca concretização". Considera que as manifestações de docentes traduzem "um descontentamento que não pode ser ‘varrido para debaixo do tapete'" e que os concursos de colocação nacional estão "completamente ultrapassados". EDUCARE.PT: Tanto em 1987, numa entrevista ao Expresso, como, mais recentemente, em 2004, numa entrevista ao Correio da Manhã, disse estar insatisfeito com o sistema de ensino português. Dois anos depois, considera que mudou alguma coisa?Roberto Carneiro: Em essência não. Nem se pode esperar que ao nível de um megassistema social como é a Educação algo de substantivo possa ser mudado em dois anos. Há, todavia, em sentido tendencialmente positivo, uma melhor atenção aos resultados da escola e à eficiência de aplicação dos recursos. No sentido oposto, de pendor negativo, registo o aumento de conflitualidade e um desânimo reinante no âmago do sistema e que afecta muitos dos seus principais actores.E: Afirmou na entrevista ao Correio da Manhã que "a Educação tem o motor gripado". Ainda subscreve esta afirmação?RC: Seguramente. E o motor continuará "gripado" enquanto não houver um radical afastamento do modelo centralizado e uniformista de governação que herdámos da modernidade educativa há mais de dois séculos atrás.
E: No seu estudo "20 anos para recuperar 20 décadas de atraso" afirma que, em 2020, Portugal deverá ter formado cinco milhões de adultos e mais de metade dos alunos terão um curso superior. A concretizar-se, como poderá evoluir também o mercado de trabalho no sentido de conseguir absorver mão-de-obra tão qualificada? Não existirá o risco de a maioria dos jovens ficar no desemprego devido ao excesso de habilitações, como acontece actualmente em Portugal, dando origem à continuação da chamada "fuga de cérebros"?RC: Prefiro a "fuga de cérebros" à ausência de cérebros. Num mundo global e interligado, não nos podemos admirar, nem afligir, que alguns dos nossos melhores talentos decidam organizar a sua vida no estrangeiro. Até é bom para o País que Portugueses de qualidade singrem pelas melhores universidades, laboratórios de investigação e empresas pelo mundo fora. Portugal tem sofrido, desde há 20 décadas, um problema grave de défice de qualificação, não de excesso de qualificação. O nosso tecido empresarial e, por tabela, o mercado de trabalho evoluirão inexoravelmente para empregos de mais alto valor acrescentado. Já lá vai o tempo em que o País poderia aspirar a ser competitivo na base de uma mão-de-obra com a 4.ª classe. Reconheço que há universitários desempregados, mas aí teremos de responsabilizar directamente as nossas instituições de ensino superior pela persistência em ofertas desajustadas e pela manifesta relutância em se adaptarem a um novo modelo de sociedade e de economia. E: Segundo dados da OCDE, a maioria dos alunos portugueses tem um mau desempenho a Matemática. No entanto, há uma minoria que entra em competições internacionais (como as Olimpíadas Ibero-Americanas) e obtém bons resultados. Acha que o actual sistema de ensino contribui para aumentar as desigualdades na aprendizagem? RC: Alain Touraine, conhecido sociólogo francês, denuncia como maior falhanço da escola pública da modernidade industrial o incumprimento da promessa de maior equidade e igualdade de oportunidades, que está na raiz da sua instituição. Enquanto tivermos cerca de 40% de jovens privados de completar um nível de escolaridade equivalente ao do 12.º ano de escolaridade - patamar mínimo para o exercício de uma cidadania plena na era da informação e do conhecimento - estaremos a alimentar o fosso que separa os incluídos dos excluídos. Precisamos de avançar decisiva e resolutamente na elevação dos padrões de ensino da Matemática - como das demais disciplinas - para todos e não apenas para alguns. E: Em 2004, na entrevista ao Correio da Manhã, afirmou que a Educação continuava "a não ser uma prioridade nacional". Considera que o actual Governo já vê a educação como prioritária?RC: Continuo a ouvir muita retórica e pouca concretização. Nenhum Governo, por si só, tem capacidade para levar a cabo a regeneração do sistema educativo. Por isso, espera-se do Governo o exemplo, o estímulo, o apoio, a defesa da liberdade de iniciativa, a regulação inteligente e não sectária, e sobretudo o papel de catalisador. Um Governo, qualquer que seja, interpretará a Educação como prioritária na medida em que for capaz de "convocar" todas as forças e parceiros sociais para esse desígnio. Já lá vai o tempo em que o "despotismo iluminado" fez caminho... E: Na mesma entrevista, disse que para "animar as escolas" é necessária "uma liderança forte, carismática e visionária". Revê essa liderança na actual ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues?RC: Não me pronuncio sobre pessoas ou titulares de cargos de responsabilidade política em concreto. Interessa-me muito mais o debate de ideias, a clarificação de projecto nacional, o apuramento de metodologias. Uma boa liderança, seja nacional, seja local ou comunitária, reflecte-se sempre na forma como: (i) transmite uma visão, afirma um sonho; (ii) contagia pelo testemunho; (iii) mobiliza as pessoas; (iv) alinha os recursos afectos pela comunidade nacional ao desígnio educativo.
E: Como vê a manifestação de docentes do passado dia 5 de Outubro e a greve agendada para os próximos dias 17 e 18? Concorda com as imposições do Ministério da Educação na revisão do Estatuto da Carreira Docente?RC: Haverá que interpretar seriamente a expressão da manifestação e da greve de docentes, ou seja, ser capaz de discernir entre os significados mais profundos que esconde. Por um lado, pela sua inusitada dimensão pública, esses fenómenos traduzem um real descontentamento da classe docente perante as políticas laborais e salariais em curso, o qual não pode ser simplesmente ignorado ou "varrido para debaixo do tapete". Mas, por outro lado, eles são também os estertores finais de um corporativismo sindical, feito de tabus cultivados em séculos anteriores, os quais têm tido grande dificuldade em se adaptar às dinâmicas da história presente e às novas exigências de uma profissão sob intensa pressão - e escrutínio - para encontrar novos caminhos.
E: Como viu a colocação de professores deste ano? Considera que o concurso deve ter efeito prático para os próximos três anos, tal como o Ministério estipulou, ou devia voltar a ser anual tendo em conta a insatisfação dos professores?RC: Acho que continuamos ancorados a paradigmas completamente ultrapassados e a "reinventar a roda". Os contratos plurianuais foram introduzidos em legislação da década de 80. A persistência em sistemas de colocação nacionais, computadorizados e abstractos não oferece solução, a prazo - a esclerose será cada vez mais evidente. Num quadro de autonomia plena das escolas, que continua a ser inequivocamente afirmado no plano do discurso político, deve transferir-se para a esfera de responsabilidade dos estabelecimentos de ensino, com gradualidade prudente mas firmeza estratégica, o essencial da selecção, contratação e avaliação dos seus recursos humanos. Cada comunidade escolar - pais, professores, autarquias, forças vivas locais - deve ser responsabilizada pela escolha dos professores que melhor sirvam os projectos educativos livremente aprovados por essa comunidade. E: Segundo a OCDE, a maioria das escolas portuguesas tem, em média, um computador por cada 10 alunos. Para além disso, quando as direcções das escolas são inquiridas sobre a importância das TIC, continuam a considerar que a falta delas "não é muito prejudicial" no ensino. Considera que existe desinteresse pelas TIC nas escolas portuguesas?RC: A mera exibição de indicadores de acesso a equipamento informático diz-nos muito pouco sobre o seu uso efectivo. E, sobretudo, fica muito aquém de uma real compreensão do eventual impacto das TIC - que pode ser vasto e relevante - sobre a modificação dos modelos de relacionamento no seio das escolas e sobre a reformulação das práticas pedagógicas e gestionárias. Penso que, com algumas excepções (poucas), as TIC não se entrelaçaram com visões transformadoras do todo escolar e, muito menos, com estratégias de renovação pela base das pirâmides educacionais. Por isso, mais do que "mero desinteresse" o facto desolador é que as TIC têm sido encaradas essencialmente como segmentos isolados da vida curricular e, no demais, como ferramentas muito úteis para descarregar informação e "objectos do conhecimento codificado" na direcção professor-aluno. Para utilizar uma analogia inspirada em metáfora do mundo da nova Internet estamos ainda distantes da revolução Educação 2.0 em que as TIC sejam o propulsor de comunidades de aprendizagem efectiva e de uma nova ética do esforço e da disciplina de escola susceptível de ultrapassar o laxismo de uma educação sem chama nem dedicação.
E: Concorda com o encerramento de escolas com poucos alunos no Interior do país?RC: Concordo. É uma política que se encontra definida há pelo menos 20 anos. Se pensarmos no bem maior que é o da criança ou jovem, é evidente que não encontraremos justificação para manter guetos em funcionamento precário, com menos de 10 alunos, onde falecem as condições mínimas de socialização e de "massa crítica" para uma aprendizagem em grupo. Dito isto, também acrescentarei que o encerramento não deve ser feito "às cegas" e por mera discricionariedade administrativa. Cada caso tem de ser analisado nos seus contornos, e méritos próprios, para que sejam criadas efectivas - e reconhecidas - condições de melhoria "visível" do enquadramento escolar, comunitário e pedagógico dos alunos atingidos. As crianças não são abstracções estatísticas. Cada criança, cada família, merece uma atenção, uma explicação, que torne evidente que a mudança se fará para melhor.
E: É difícil ser ministro da Educação em Portugal?RC: Em Portugal e em qualquer país do mundo. Creio, todavia, que com a actual "redução" de âmbito do Ministério da Educação - "apenas" aos ensinos básico e secundário - a complexidade da tarefa se encontra mais "controlável". Houve tempo, como se recordará, em que o Ministério da Educação incluía também todo o ensino superior, a investigação científica, o desporto e, nalgumas orgânicas governamentais, a juventude e a cultura. O monstro é hoje um "monstrozito"...
E: Voltaria a sê-lo, neste momento, se o convidassem?RC: Há um tempo para cada experiência, um contexto próprio para cada aventura. Já deixei funções governativas há 15 anos. Fui convidado por mais do que uma vez, desde então, para retornar ao exercício de funções governamentais, por sinal para pastas diferentes da Educação. Circunstâncias diversas da minha vida pessoal e pública inviabilizaram o propósito. Todavia, creio bem ser possível servir o País noutras instâncias igualmente dignas: na universidade, em empresas, em associações, em responsabilidades de interesse público noutros níveis de intervenção.
Marta Rangel

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