terça-feira, outubro 09, 2007

A (des)Ordem na Formação dos Professores

Rui Batista“Toda a verdade gera um escândalo”.Marguerite YorcenarNo que respeita à elaboração e revisões do Estatuto da Carreira Docente (do ensino não superior), duas federações sindicais – a Fenprof e a FNE – destacaram-se na acção reivindicativa junto dos ministérios da Educação, tutelados por João de Deus Pinheiro (PSD), Marçal Grilo e Maria de Lurdes Rodrigues (ambos do PS). Mas nenhuma destas ocasiões foi aproveitada para varrer o lixo dos diversos textos legislativos de que elas enformavam, tendo-se optado por o esconder debaixo do tapete. Ou nem isso, sequer.Refiro-me à aberração de articulados legais abrigando, sob um mesmo teto, todos os professores, desde os bacharéis do ensino infantil e 1.º ciclo do ensino básico aos licenciados do ensino secundário, apenas com a pequena diferenciação no fim da carreira docente: os dois primeiros estratos chegavam ao 9.º escalão e os terceiros ao 10.º, com pouca diferença salarial entre si.Mas como se não tratasse já de uma benesse tirada a ferros sindicais, para os bacharéis ou equiparados rapidamente se criaram “escolas superiores privadas” que em meia dúzia de meses, ou pouco mais, os catapultaram para o 10.º escalão (alguns deles, como é o caso dos professores de trabalhos manuais, apenas com os cursos das extintas escolas comerciais ou industriais que nem sequer tinham equivalência ao antigo 5.º ano liceal, actual 9.º ano de escolaridade). Através de elementos estatísticos seria interessante dar a conhecer publicamente quantos bacharéis existiam no ensino antes de 86 (ano da criação do Estatuto da Carreira Docente) e existem nos dias de hoje. É pois esta a génese da actual carreira docente saturada por formações de duvidosa qualidade tendo como resultado que os antigos licenciados universitários da via de ensino se encontrem no desemprego sem vislumbre de uma solução para os anos mais chegados. Sintomaticamente, dias atrás, ficou-se a saber, por um órgão de informação diária, que, ao contrário do que se passa em Portugal, em outros países europeus a equiparação salarial entre os professores do 1.º ciclo do ensino básico e do ensino secundário não se verifica: na Hungria e na Holanda os professores do secundário têm salários superiores em 75 por cento relativamente aos do 1.º ciclo do ensino básico, sendo a média da OCDE de 41 por cento de diferencial salarial (“Público”, 18.Set.2007). Para agravar esta situação, quando era expectável que a preparação dos educadores de infância e do 1.º ciclo do ensino básico se fizesse, apenas, a nível de uma licenciatura bolonhesa, ficou-se recentemente a saber que passaria a ser a nível de mestrado. Ou seja, em nome de uma mediocracia que anula toda e qualquer diferença e posterga todo e qualquer valor, a exigência formativa para quem ministra estes dois graus iniciais da ensinança é a mesma da exigida para o ensino do 10.º, 11.º e 12.º anos do ensino secundário. Como se ensinar no ensino infantil e 1.º ciclo do básico as primeiras letras tivesse o mesmo grau de exigência da Literatura ministrada no ensino secundário, por exemplo. Aliás, desde os conturbados tempos revolucionários, com uma ou outra excepção, nunca os sindicatos de professores se preocuparam em discutir, sequer, quem podia ou devia ser professor. Passado mais de um século de Ramalho Ortigão ter afirmado que “nem tratante se pode ser sem alguma instrução ou tirocínio”, qualquer indivíduo que desse uns escassos dias de aula era logo admitido como sócio de pleno e efectivo direito.Fortemente crítico relativamente a este “statu quo”, escrevi: “Consultar códigos não habilita ninguém a constituir-se em homem de leis e receitar um vermífugo para o cão da vizinha não cumpre os requisitos de inscrição no Sindicato dos Médicos Veterinários. Com raras excepções, os sindicatos dos professores nunca acataram este princípio que a analogia justificava e o simples bom senso aconselhava. Talvez por isso, o estudante de Direito quando ainda estava a aprender – dava aulas e era intitulado professor! Quando já sabia, passava a advogado. O estudante de Farmácia quando ainda estava a aprender – dava aulas e era intitulado professor! Quando já sabia, passava a farmacêutico. O estudante de Arquitectura, quando ainda estava a aprender – dava aulas e era intitulado professor! Quando já sabia, passava a arquitecto. Em contrapartida, ser professor em Portugal era menos uma profissão e mais uma maneira de ganhar a vida para quem não se tinha preparado para nada exigindo um futuro sem nenhum passado” (artigo do “Jornal de Notícias”, 25. Junho. 1992, transcrito mais tarde no livro “Do caos à Ordem dos Professores”, Rui Baptista, edição do SNPL, Janeiro 2004, p.p. 32- 33). Aliás, a maneira de agir destes sindicatos em muito se identifica com a de um criado de Eça de Queiroz, personagem de um dos seus sarcásticos textos literários: “Caso surpreendente! E sobretudo surpreendente para mim, porque descubro que a Academia tem sobre os livros a mesma opinião do meu velho criado Vitorino. Este benemérito, quando em Coimbra lhe mandávamos buscar a um cacifo, apelidado de ‘Biblioteca da Alexandria’, um livro de versos, trazia sempre um dicionário, um Ortolan ou um tomo das Ordenações; e se, por maravilha, nos apetecia justamente um destes tomos de instrução, era certo aparecer Vitorino com Lamartine ou a ‘ Dama das Camélias’. Os nossos clamores de indignação deixavam-no superiormente sereno. Dava um puxão do colete de riscadinho, e murmurava com dignidade: ‘Isto ou aquilo tudo são coisas de letra redonda’”. Na senda de outras profissões organizadas em ordens profissionais e perante o caos existente na formação dos professores, o Sindicato Nacional dos Professores Licenciados, em 25 de Fevereiro de 2004, apresentou uma petição com 7857 assinaturas para a criação de uma Ordem dos Professores, debatida na Assembleia da República, em 2 de Dezembro desse mesmo ano, e que nem sequer chegou a ser votada sob a alegação de estar em estudo uma Lei Quadro para, entre outras medidas, retirar às futuras ordens profissionais o direito de não permitirem a admissão a indivíduos habilitados com cursos por si não reconhecidos. Viviam-se, então, os agitados dias em que a Ordem dos Engenheiros não reconhecia umas tantas licenciaturas em Engenharia, v.g., as da Universidade Independente. Ora retirar às futuras ordens esse importante papel de auto-regulação é despojá-las da sua capacidade em fecharem a porta a futuros mestrados, muitas vezes, de pechisbeque, embora com o ouropel da chancela do Estado ou o seu reconhecimento.Com uma possível, embora indesejável, aprovação desta medida legislativa existe o perigo de personalizar a acreditação dos novos mestrados aos perfis social, político ou económico de alguns dos seus usufrutuários criando-se, desta forma, situações, no mínimo, pouco ou nada claras, apenas justificadas se for esse o caminho pretendido para manter o atoleiro em que se meteu a Educação para vergonha do nosso país perante a Comunidade Europeia. Neste caso, esta a medida exacta na hora certa! *Ex-docente da Universidade do Porto.ruivbaptista@sapo.pt

1 comentário:

Rui Baptista disse...

Grato pela publicação do meu texto. Votos de um novo ano bem melhor do que aquele está prestes a findar, deixando poucas ou nenhumas saudades no sector da Educação.