segunda-feira, novembro 03, 2008

Por que protestam os professores?

Seja qual for o Governo, seja qual for o ministro, há uma verdade que o tempo se tem encarregado de tornar indesmentível: os professores manifestam-se, protestam, fazem greve.

Normalmente, essa actividade contestária da classe docente resulta na demissão do responsável pela pasta da Educação. Mas, nos tempos que correm, a situação é diferente. Maria de Lurdes Rodrigues, que ostenta o título de governante que enfrentou a maior manifestação de sempre - 100 mil professores saíram à rua em Março último -, tem resistido à força dos cartazes e das palavras de ordem e na sua agenda estão já assinalados mais dois dias de luta, a 8 e 15 de Novembro.

Mas, afinal, por que protestam tanto os professores? A pergunta não é de resposta fácil, mas há uma justificação, avançada pelo antigo ministro Couto dos Santos, que pode muito bem ser o ponto de partida para outras análises. "Após o 25 de Abril, o sistema educativo em Portugal não se conseguiu libertar do anátema de politizar as questões relacionadas com a educação." Depois, vêm as razões mais directas, enumeradas pelos próprios docentes, por quem os representa, por quem está do outro lado e mesmo por quem assiste de fora: desrespeito por parte da tutela; adopção de medidas que alteram os fundamentos da escola pública; mudança de regras e introdução de normas de rigor e exigência; e ausência de constrangimentos de natureza contratual que os [professores] possam fazer sentir em perigo.

Independentemente da validade de cada uma ou de todas elas, é difícil pôr de lado a ideia de uma certa vulgarização da manifestação. É a "coreografia ou ritualização da contestação sindical", nas palavras do professor e bloguista Paulo Guinote.

Uma vida de protestos

Nos próximos dias 8 e 15, os professores voltarão a sair à rua para protestar contra a política educativa do Governo. "Oito meses depois da marcha de oito de Março, os professores farão um grande oito de Novembro".

É este o lema mobilizador da Plataforma Sindical dos Professores, que congrega as organizações mais representativas da classe. Sete - e não oito - dias depois, uma nova manifestação, desta feita organizada por diversas associações do sector. Sinal de divisão? Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof - a maior federação sindical - diz que a classe dos professores não está tão dividida como se quer fazer crer. "Somos suficientemente unidos para nos juntarmos e suficientemente preocupados para reivindicarmos", sintetiza, sublinhando que esta é uma das razões de base por que os docentes se manifestam tão frequentemente.

Não obstante, prossegue o sindicalista, há motivos mais palpáveis. "No sector da Educação, os governos, particularmente desde o de Durão Barroso, tomaram medidas que têm vindo a alterar profundamente os fundamentos da escola pública". Decisões que, na sua opinião, se traduziram em desinvestimento e num modelo de gestão em que o professor é cada vez menos chamado a participar. Como resultado disso, afirma, a estabilidade dos profissionais foi ferida. "Se alguém vive todos os dias a escola são os professores, que, em alguns casos, até são o seu suporte financeiro, pondo à disposição o seu próprio material. E em troca recebem o quê? Desrespeito e falta de reconhecimento, através de ataques às carreiras e aos horários", acusa Mário Nogueira, referindo-se em concreto à política seguida pela actual ministra, Maria de Lurdes Rodrigues.

Uma política que, nas palavras do secretário de Estado da Educação, mais não pretende do que instaurar regras de rigor e de exigência. Valter Lemos admite que houve, nesta legislatura, uma alteração significativa à organização do trabalho dentro da escola, que obriga a uma maior permanência do docente no estabelecimento de ensino, bem como a introdução do princípio de carreira, por ser a única classe que não o tinha. "São alterações profundas, estruturais", reconhece, afirmando, por isso, compreender a "perplexidade, intranquilidade e estupefacção" dos professores. E como estamos a falar de uma classe com cerca de 150 mil profissionais, cada situação abrange sempre um elevado número de pessoas. Outra razão que favorece o protesto.

Santana Castilho, que já foi secretário de Estado dos Assuntos Pedagógicos no Governo liderado por Pinto Balsemão, recua até ao tempo do marquês de Pombal para dar conta da insatisfação permanente da sociedade face às questões da Educação. "Há, ciclicamente, um conflito entre a sociedade, a escola e o sistema de ensino, em Portugal ou em qualquer parte do mundo ocidental, como está a acontecer em Itália e em França", testemunha o agora professor de Organização e Gestão do Ensino. Mas... "em 34 anos de democracia nunca vi uma política para a Educação tão acintosa", arrisca, frisando que os docentes "estão cansados, fartos, não aguentam o que se está a passar". E o que se está a passar é, diz, uma política para formar mão-de-obra mais rapidamente, mais barata e menos reivindicativa. Nesse sentido, entende que, se noutras alturas houve greves ou manifestações questionáveis, agora não é assim.

Essas greves ou manifestações questionáveis são definidas por Paulo Guinote como "a coreografia ou ritualização da contestação sindical". O professor e autor do blogue "A educação do meu umbigo" enquadra a tendência pró-protesto da sua classe na circunstância de os docentes constituírem o grupo profissional qualificado mais numeroso a trabalhar para o Estado e, também, pelas condições em que desde há muito se viu obrigado a trabalhar (precariedade do vínculo laboral de muitos milhares durante vários anos, instabilidade nas colocações, inexistência de apoio em caso de desemprego).

Guinote, que assume ter feito a sua estreia em manifestações apenas este ano e já lecciona desde 1987, considera que a tal coreografia da contestação - "muito marcada durante os anos 90 e aceite tácita ou mesmo activamente pelos sucessivos governos" -, para além de ter eventualmente saturado quem está de fora, também cansou muitos docentes, apontando-se a ele próprio como um exemplo. E do rol de culpados constam os sindicatos. "Incapazes durante muito tempo de uma renovação de mentalidades, deixaram-se adormecer por essa ritualização negocial baseada em acções de rua seguidas de umas quantas reuniões de gabinete em que as coisas lá se resolviam, com as assinaturas dos acordos a variarem conforme o partido no poder".

O docente, que se assume como "alguém que está longe de ser um tradicional activista da constestação", deixando claro que nunca foi sindicalizado nem integra os recém-formados movimentos de professores, entrou agora na luta de rua por a Educação ser, neste momento, "a arma política por excelência deste Governo". "O uso das escolas como locais para uma despudorada pré-campanha eleitoral é algo que choca qualquer observador neutro, quanto mais aqueles que nela trabalham", desabafa.

Neste ponto, vai ao encontro de Mário Nogueira quando o dirigente sindical afirma que o início deste ano lectivo foi usado pelo Governo para valorizar os equipamentos (o famoso Magalhães, os quadros electrónicos...) e ignorar os professores. "Aliás, quando se referiram aos professores (os membros do Governo) foi apenas para dizer que já lá vai o tempo do facilitismo".

Na verdade, o que faz falta é um consenso. Couto dos Santos, que já passou pelo Ministério da Educação e que recorda os protestos quase diários de que foi alvo - não é, portanto, de estranhar que fale em vulgarização da manifestação e sua consequente descredibilização - defende que o presidente da República deveria assumir a questão da Educação como um desígnio e promover um debate supranacional, que ajudasse a resolver o handicap do país em relação a outros países.

Consenso ou concertação, como aponta Ivo Domingues. O sociólogo da Universidade do Minho, que escreve e reflecte sobre temas da Educação, lamenta a não existência em Portugal de uma cultura da política favorável à concertação. "Temos o Governo a legislar sem ouvir convenientemente os parceiros e movido por uma agenda política em que o tempo é erradamente concebido. As mudanças fazem-se muito por decreto. E temos sindicatos que apenas existem para defender o que há. Precisamos de governos que negoceiem mais as medidas e sindicatos que sejam parceiros na antecipação do futuro", observa.

Como este cenário não se verifica e como os professores têm uma identidade profissional muito própria, o resultado está à vista: manifestações e mais manifestações. Do ponto de vista da análise sociológica, a questão da identidade profissional é muito importante, segundo Ivo Domingues. Ou seja, na medida em que os professores se vêem a eles próprios como formadores de personalidades e de cidadãos, assumem para eles o comportamento de cidadania que lhes permite dizer com toda a liberdade o que pensam. "E como não têm constrangimentos de natureza contratual que os possa fazer sentir em perigo, porque o patrão é o Estado e é ao Estado que compete garantir todos os direitos de cidadania"..., avançam para a rua.

Mas será que esta falta de concertação é exclusiva do sector da Educação? Não, diz o sociólogo. A questão é que, explica, os médicos e os juízes, por exemplo, têm outros palcos de influência e de defesa dos seus interesses. "Estão mais representados nos órgãos centrais do Estado", sintetiza.

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